sábado, 9 de maio de 2009

ASPECTOS DA GRAMATICALIZAÇÃO NA HISTÓRIA DAS PREPOSIÇÕES DO LATIM AO PORTUGUÊS
Rosauta Maria Galvão Fagundes Poggio
Universidade Federal da Bahia
RESUMO : Este trabalho, baseado na teoria funcionalista, apresenta um complemento ao estudo do processo de gramaticalização de algumas preposições que ocorreram nos Diálogos de São Gregório, corpus analisado na tese de Doutorado “Relações expressas por preposições no período arcaico do português em confronto com o latim”.
PALAVRAS-CHAVE: gramaticalização, funcionalismo; preposições.
ABSTRACT: This work, based in the Functionalism theory, presents a complement to the study of the grammaticalization process of some prepositions that occurred in the Diálogos de São Gregório, corpus analysed for the Doctoral Thesis, “Relações expressas por preposições no período arcaico do português em confronto com o latim”.
KEYWORDS: grammaticalization, funcionalism; preposition.
0 Introdução
Este trabalho é parte de um projeto coletivo do Programa para a História da Língua Portuguesa (PROHPOR), sob a Coordenação da Profa. Dra. Rosa Virgínia Mattos e Silva. Os corpora básicos analisados constituem-se da versão latina do século VI e da versão mais antiga em português arcaico (século XIV) dos dois primeiros livros dos Diálogos de São Gregório.
Nos dias atuais, é grande o interesse pela investigação histórica dos fatos lingüísticos. Já, em 1912, A. Meillet empregou pela primeira vez o termo gramaticalização.
Na minha tese de Doutorado, intitulada “Relações expressas por preposições no período arcaico do português em confronto com o latim” (POGGIO 1999), verifica-se que, na passagem para as línguas românicas, no processo de gramaticalização, além de se recorrer a algumas preposições existentes em latim, surgem novas formas e procura-se estudar um grupo de preposições que se mantiveram na passagem para o português e um grupo de preposições novas, gramaticalizadas no português. A partir desse estudo, levantou-se uma série de questões sobre a história das preposições do latim ao português, que, devido à escassez do tempo, deixaram de ser investigadas, a fim de serem elucidadas posteriormente. Entre essas questões, citam-se: - há preposições cujas formas desapareceram, embora seus conceitos tenham passado a ser expressos por outras preposições ou por locuções prepositivas; - há preposições cujas formas desapareceram, mas são empregadas na língua portuguesa como prefixos, embora seus conceitos tenham passado a ser expressos por preposições ou por locuções prepositivas; - há preposições cujas formas sofreram mudanças na sua passagem para o português; e, finalmente, - há casos em que duas preposições latinas uniram-se dando origem a apenas uma forma em português. Alguns desses casos serão tratados nesta comunicação, à luz da teoria funcionalista da gramaticalização.
1 Preposições cujas formas desapareceram, embora seus conceitos tenham passado a ser expressos por outras preposições ou por locuções prepositivas
As preposições do primeiro grupo, como: apud, propter, coram e usque foram estudadas em um trabalho apresentado no L Seminário do Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo - GEL (POGGIO 2002).
Nesta comunicação, serão estudadas as preposições do segundo grupo.
2 Preposições cujas formas desapareceram, mas são empregadas na língua portuguesa como prefixos, embora seus conceitos tenham passado a ser expressos por outras preposições ou por locuções prepositivas
Nesse grupo, incluem-se as preposições latinas: a/ab, e/ex, extra, intra, juxta e ultra, documentadas nos Gregorii Magni Dialogi Libri IV, mas que desapareceram, na passagem para o português, sendo empregadas como prefixos. Resta investigar como são expressos esses conceitos nessa língua.
As preposições desse grupo estão distribuídas em três sub-grupos: - formas que já eram usadas como prefixos no latim clássico; - formas que começaram a ser usadas como prefixos no latim tardio; e – formas que se tornaram prefixos no português.
2. 1 Formas usadas como prefixos no latim clássico
Entre as formas que já eram empregadas como prefixos no latim clássico, citam-se: a/ab, e/ex e extra.
2. 1. 1 As preposições a/ab e e/ex
Segundo W. Lindsay (1937: 146), a preposição ab origina-se do indo-europeu ap (‘de’), forma abreviada de apo (grego) e a preposição ex, do indo-europeu eks, constituída de ek mais a partícula se.
De acordo com L. Rubio (1983: 177-178), embora as preposições de, ex e ab expressassem o ‘afastamento’, ex e ab acrescentam um traço peculiar a essa noção: ex denota ‘afastamento a partir do interior’ e ab, ‘a partir do exterior’ do objeto. Cícero, em seu discurso Pro Caecina, joga com as diferenças que opõem essas preposições entre si:
(1) Si qui meam familiam de meo fundo deiecerit, ex eo me loco deiecerit; si qui mihi praesto fuerit cum armatis hominibus extra meum fundum et me introire prohibuerit, non ex eo, sed ab eo loco me deiecerit...
(‘Se alguém expulsasse minha família de minha terra, me expulsaria a mim mesmo dela; se alguém se apresentasse diante de mim com homens armados, fora de minha terra e me proibisse de entrar (nela), não me expulsaria do interior, mas das proximidades desse lugar...’).
Observa-se que Cícero inicia seu discurso com o termo mais geral de (de meo fundo) e estabelece a oposição ex/ab em termos precisos e opostos ao impreciso de.
Segundo M. Said Ali (1964: 204), de é a preposição latina empregada com mais freqüência e para diversos fins. Inicialmente, de exprimia ‘afastamento de cima para baixo’, diferente de ab que significava ‘afastamento no sentido horizontal’. De começou a confundir-se com ab e essa última desapareceu. Para expressar o ‘movimento de dentro para fora’, o latim usava a preposição ex. De tornou-se equivalente a ex, e essa veio a desaparecer. Portanto, de passou a exprimir o sentido de ‘afastamento’ e de ‘procedência’.
J. P. Machado (1977: s.v. de) assinala que a preposição de é mais plena e tem a vantagem sobre ab e ex, devido ao fato de iniciar-se por consoante. Desse modo, de acabou por eliminar as duas outras preposições que com ela competiam, como se pode notar nas concorrências entre ab, ex e de, documentadas em textos do latim tardio.
Em resumo, a preposição de, em português, passou a assumir as três noções do latim representadas pelas preposições ab, ex e de e mais a idéia de posse encontrada no seu sentido de base, que se exprime pela relação de subordinação de um substantivo a outro.
Na versão latina dos Diálogos de São Gregório, há variação no uso das preposições ab, ex e de, não se percebendo aquela rigidez no emprego de cada uma delas, conforme foi apontado por L. Rubio (1983). Isso evidencia o início da mudança, quando as formas coexistem, havendo interferência entre seus campos semânticos.
No exemplo abaixo dos Diálogos de São Gregório, a preposição ex foi empregada, na sua acepção original de ‘afastamento do interior de’:
(2) [...] pro iniuria quam ingresserat recedere eum velle ex monasterio putabat (1, 24, 9-11)
(‘[...] cuidou-se ca se queria ir do moesteiro polo torto que lhi avia feito (1, 5, 9)
No exemplo dos Diálogos de São Gregório, que se segue, a preposição ab foi usada, na sua acepção original de ‘afastamento do exterior de’:
(3) [...] cum mane facto ad eundem locum fratres venerunt adque invenerunt molem tantae
magnitudinis ab eodem loco longius recessisse (1, 45, 8-10)
(‘E pois foi manhãã veeron os früdes e acharon o penedo muito alonjado daquele logar que
eles avian mester (1, 13, 14)’).
Entretanto, muitas vezes, na referida obra, empregou-se a preposição latina de, tanto para expressar o ‘afastamento do interior de’ (em lugar de ex), como para expressar o ‘afastamento do exterior de’ (em lugar de ab), conforme aparece nos exemplos abaixo:
(4) [...] antiquum hostem de obsesso homine protinus expulit (2, 104, 3)
(‘[...] e logo o enmiigo saiu do seu corpo (2, 16, 4)’)
(5) [...] annis singulis de loco suo ad cellam [...] venire consueverat (2, 99, 20-21)
(‘[...] viinha cada ano do logar en que morava ao moesteiro de San Beento (2, 13, 2)’).
Em latim clássico, a forma a/ab também está documentada como prefixo, como se observa nos vocábulos: averto, absum, abjurare, abjuratio, abstinere, abstentio, abstrahere, abstratio, entre outros. Na passagem para o português, deu-se o desaparecimento da preposição ab e sua manutenção como prefixo, como nos exemplos: abjurar, abjuração, abster, abstenção, abstrair, abstração e outros.
Também o prefixo ex está registrado em latim em inúmeras formas, como: exeo, exarmo, exaltare, excurrere, exhaurire, explodere, exquisitus, ex-abruptus, ex-officio etc. Do mesmo modo que ab, ex desapareceu como preposição e se conservou como prefixo, como se observa nos exemplos: exaltar, exaurir, explodir e outros.
No latim tardio, acentuou-se o uso de ex para a formação de compostos, como ex-consul. O português seguiu o modelo latino ex mais substantivo e/ou adjetivo para indicar ‘estado’, ‘profissão’, ‘emprego’, como nos exemplos: ex-tuberculoso, ex-catedrático, ex-presidente etc.
2. 1. 2 A preposição extra
Segundo V. Magnien (1948: 499), a preposição extra provém do ablativo feminino de exterus (extera), formada do mesmo modo que outras preposições, como: infra, intra, supra e ultra.
A preposição extra, conforme assinala E. Faria (1958: 264), possuía os seguintes empregos: - ‘fora de’ (sentido próprio): Hi sunt extra Prouinciam (Cés., B.G. 1,10,5) (‘Estes estão fora da Província’); - ‘fora de’ (sentido figurado) e daí ‘sem’, ‘exceto’: extra causam (Cíc., Caec., 94) (‘fora da causa’).
Segundo M. Bassols de Climent (1956: 244), trata-se de uma preposição empregada com acusativo, tanto com verbos de repouso como de movimento, com a acepção de ‘fora’, ‘no exterior’. Em sentido figurado, assinala a exclusão (‘exceto’) e a carência ou falta (‘sem’). No latim tardio, competiam com extra, as preposições foras e foris, porém apenas na acepção local.
Nos Gregorii Magni Dialogi Libri IV, a forma latina extra é empregada como preposição, enquanto, na versão portuguesa, ela corresponde às preposições ante, na acepção de ‘espaço: diante de’ e de, na acepção de ‘espaço: afastamento (para fora
de)’ e pela locução prepositiva fora de, na acepção de ‘espaço: direção (fora de)’ e ‘noção: modo’, como nos exemplos abaixo:
(6) [...] omnipotenti Domino ab ipso infantiae tempore dicata, ad eum semel per
annum venire consueverat; ad quam vir Dei non longe extra ianuam in possessione
monasterii discendebat (2, 125, 18-20)
[...] cada ano viinha veer seu irmão hua vez e seu irmão saia a ela a huu logar da
clastra, a huum logar honesto que avia ant’a porta do moesteiro en que falava con ela
(2, 33, 6)
(7) Duobus modis [...] extra nos ducimur (2, 82, 17)
En duas maneiras [...] saimos nós de nós meesmos. (2, 3, 42)
(8) [...] eiusque mentem in extasi rapuit, extra se quidem, sed super semetipsum fuit
(2, 82, 21-23)
E estes taaes como quer que anden fora de si meesmos pero non caen sô si (2, 3,
45).
Em latim clássico, extra também era empregada como prefixo, como se vê, por exemplo, nos vocábulos extraordinarius, extramundanus, entre outros.
Em português, extra mantém-se apenas como prefixo que, conforme A. G. Cunha (1991: s.v. extra), se documenta em inúmeros vocábulos eruditos ou semi-eruditos, como extraordinário, extrapolação etc. Em português atual, há grande vitalidade de extra em formações populares, particularmente, com a acepção de ‘muito bom’, ‘de muito boa qualidade’ e, como vocábulo independente, substantivado, em contextos específicos, como: ‘serviço avulso e/ou fora do horário normal de trabalho’, ‘ator figurante’ etc.
No que se refere à gramaticalização das preposições desse grupo, conclui-se que:
- após um longo período de coexistência das formas ab, ex e de para indicar o ‘afastamento’ e a ‘procedência’, na passagem para o português, emprega-se apenas a preposição de, que, como já se observou, acaba por eliminar as duas outras; assim sendo, ex e ab chegam ao estágio zero do processo de gramaticalização, sendo expressos seus conceitos através da preposição de ou de locuções prepositivas, como: do interior de, das proximidades de, entre outras;
- a preposição latina extra provém da recategorização do advérbio extra; na passagem para o português, essa preposição também desaparece, mas seu conceito é expresso, ou através do uso das preposições ante e de, ou através do uso de locução prepositiva (fora de); observa-se, portanto, com o desaparecimento de extra, a ocorrência do estágio zero do processo de gramaticalização; ao ser empregada a locução prepositiva, para expressar o seu conceito, vê-se, como explica S. Svorou (1993), o estágio inicial do processo de gramaticalização.
No que diz respeito à significação, os prefixos desse grupo, na maioria das vezes, mantêm o sentido de base latina: ab conserva a acepção de 'afastamento’, ex de ‘afastamento com movimento de dentro para fora’ e extra de ‘fora’, ‘no exterior de’. Entretanto, em português, extra apresenta como inovação a acepção de ‘muito bom’, ‘de muito boa qualidade’.
Como se pode observar, as preposições desse grupo, na sua transposição para o português, passaram por alguns processos de gramaticalização, chegando ao estágio zero como preposição e passando a afixos na língua portuguesa.
2. 2 Forma que começou a ser usada como prefixo no latim tardio
No segundo sub-grupo, está a forma intra, que passou a ser empregada como prefixo no latim tardio.
Como assinala W. Lindsay (1937: 151), intra é proveniente do ablativo singular feminino, tendo a mesma formação que inter.
M. Bassols de Climent (1956: 245) observa que intra é empregada com verbos de repouso (‘no interior de’, ‘dentro’) e, com menos freqüência, no período pós-clássico, com verbos de movimento. Intra pode referir-se ao tempo ‘no intervalo de’, ‘durante’. Em sentido figurado, usa-se, a partir da época clássica, para indicar conformidade ‘dentro’, ‘segundo’, ‘conforme’. No período pós-clássico, intra expressa, às vezes, a inferioridade ‘um pouco menos’, ‘debaixo de’ e inclusive a carência ‘sem’ ou a exceção ‘exceto’.
Nos Diálogos de São Gregório, a preposição latina intra é sempre empregada na acepção espacial de ‘no interior de’, correspondendo à preposição en, como nos exemplos a seguir:
(9) [...] quae statim ad viri Dei verbum ita omnes egressae sunt, ut ne una quidem intra
spatium horti remanerit (1, 56, 16-18)
E todos aqueles beschos que na horta andavan [...] partiron-se do horto e nunca ende hi
huu ficou [...] (1, 21, 6).
Conforme assinala A. G. Cunha (1991: s.v. intra), o prefixo intra não se documenta como elemento de composição no latim clássico, mas no latim tardio e modernamente é de grande emprego na formação de compostos, particularmente, no campo da Biologia (intramedular, intramuscular, intravenoso), onde é naturalmente usado em oposição a extra.
No que concerne à gramaticalização, pode-se dizer que intra, ao desaparecer como preposição em português, chegou ao estágio zero, sendo, entretanto, empregada como prefixo, tanto no latim tardio como no português.
Quanto à significação, o prefixo intra conserva o sentido de base da preposição latina intra ‘no interior de’, ‘dentro’, ‘durante’, ‘segundo’.
2. 3 Formas que se tornaram prefixos no português
No terceiro sub-grupo, estão as preposições juxta e ultra, que se tornaram prefixos no português.
2. 3. 1 A preposição juxta
A forma latina juxta, conforme assinala Magnien (1948: 499), inicialmente advérbio, é empregada como preposição a partir de César e provém de *jugista, antigo superlativo ablativo feminino. W. Lindsay (1937: 151) observa que juxta vem de uma raiz juxto-, relacionada com jungo e significando ‘acrescentar’, ‘juntar’. Segundo esse autor, a forma secundária de acusativo plural neutro juxta aparece em Catullo.
O. Riemann (1942: 180) afirma que juxta, sendo empregada, inicialmente, na acepção de ‘ao lado de’, sem movimento, passou depois ao sentido temporal de ‘imediatamente depois’ e ao sentido figurado de semelhança ‘quase igual a’ e conformidade ‘conforme’. M. Bassols de Climent (1956: 246), além de apontar as acepções dadas por O. Riemann (1942), acrescenta que esse último uso é pós-clássico.
Nos Diálogos de São Gregório, a preposição juxta está documentada, na maioria das vezes, nos sentidos espaciais de ‘diante de’, tendo como correspondência a preposição portuguesa ante, de ‘perto de’, correspondendo às locuções prepositivas cabo de e arredor de e de ‘localização’, equivalendo à preposição portuguesa en. Juxta também foi empregada na acepção abstrata de ‘meio’, correspondendo a con, sendo algumas dessas acepções exemplificadas abaixo: (10) [...] hunc invitavit hospitio, sedere secum iuxta prunas (1, 60, 23-24)
[...] e convidô-o pera sa pousada e feze-o seer consigo ante o fogo (1, 25, 7)
(11) [...] iuxta eam namque civitatem aecclesia Beati martyris Stephani sita est (1, 39, 9-10)
Cabo da cidade d’Anconha ouve hua eigreja de Santo Stevan martir (1, 10, 4).
A preposição latina juxta desaparece na passagem para o português. Nessa língua, a forma justa- aparece como elemento composicional, do latim juxta (‘perto de’, ‘ao lado de’), que, segundo A G. Cunha (1991: s.v. justa), está documentado em
vocábulos portugueses eruditos, introduzidos a partir do século XIX: justafluvial (XX), justalinear (XX), justapor (XX), justaposto (XX) etc.
2. 3. 2 A preposição ultra
A preposição latina ultra ‘do outro lado’, segundo W. Lindsay (1937: 151), é derivada de uls, da raiz pronominal indo-européia ol-, do pronome ille ‘aquele’, latim arcaico olle, com o acréscimo do sufixo –tero.
Conforme salienta M. Bassols de Climent (1956: 251), usa-se ultra com verbos de movimento para indicar uma linha divisória ou fronteiriça que se traspassa (‘do outro lado’, ‘mais além’) ou com verbo de repouso para assinalar o que sucede atrás da referida linha. Autores pouco clássicos empregam-na, às vezes, em lugar de trans. Apenas no período pós-clássico, essa preposição é empregada com sentido temporal.
Nos Diálogos de São Gregório, a preposição latina ultra corresponde à locução prepositiva portuguesa fora de, como se vê no exemplo seguinte:
(12) [...] susceptum corpus eius terratenuit, nec ultra proiecit (2, 116, 23-24)
[...]a terra recebeu o corpo do morto e reteve-o en si e non-no deitou fora de si (2, 24, 9).
Em português, ultra é elemento composicional do latim ultra ‘para além de’, ‘em excesso’ que se documenta em alguns derivados e compostos introduzidos, como observa A. G. Cunha (1991: s.v. ultra), sobretudo, a partir do século XIX, na linguagem erudita, como: ultrajante (XIX), ultrajar (XVII), ultraje (XIX), ultramar (XVII), ultrapassado (XIX), ultrapassagem (XX), ultrapassar (XIX), ultra-romântico (XX), ultra-sensível (XX), ultra-som (XX), ultravioleta (XIX) etc.
No que se refere às preposições desse grupo, ambas desapareceram no português, chegando, portanto, ao estágio zero de gramaticalização. Entretanto, essas formas são usadas na língua portuguesa como prefixos.
No que concerne à significação dos prefixos desse grupo, observa-se que, no português, eles mantêm o sentido das preposições latinas que lhes serviram de base: juxta, em latim, com a acepção de ‘ao lado de’, ‘logo depois’ e justa-, em português, ‘perto de’, ‘ao lado de’; ultra, em latim, com a acepção de ‘do outro lado’, ‘mais além’ e ultra-, em português, ‘para além de’, ‘mais além’. Entretanto, o prefixo ultra- possui ainda um valor de intensificação (ultravácuo, ultra-radiação).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASSOLS DE CLIMENT, M. Sintaxis latina. Madrid: C. Bermejo, 1956. t. 1.
ERNOUT, A.; MEILLET, A. Dictionnaire etymologique de la langue latine. Paris: Klincksieck, 1951.
ERNOUT, A.; THOMAS, F. Syntaxe latine. 2. éd. rev. et augmentée. Paris: Klincksieck, 1953.
FARIA, E. Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1958.
LINDSAY, W. M. A short historical latin grammar. 2. ed. Oxford: Claredon Press, 1937.
MACHADO, J. P. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 3. ed. Lisboa: Confluência, 1977.
MATTOS E SILVA, R. V. A mais antiga versão portuguesa dos quatro livros dos Diálogos de São Gregório. Tese de Doutoramento, Universidade de São Paulo, 1971. 4 v. mimeogr.
MATTOS E SILVA, R. V. Estruturas trecentistas: elementos para uma gramática do português arcaico. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1989.
MEILLET, A. Linguistique historique et linguistique générale. Paris: Honoré Champion, 1948.
MORICCA, Umberto (Ed.). Gregorii Magni Dialogi Libri IV. Roma: Tipografia del Senato, 1924.
POGGIO, Rosauta M. G. Fagundes. Relações expressas por preposições no período arcaico do português em confronto com o latim. Tese de Doutoramento. Univ. Federal da Bahia. Salvador, 1999.
RIEMANN, O. Syntaxe latine: d’après les principes de la grammaire historique. 7. éd. revue par A. Ernout. Paris: Klincksieck, 1942.
RUBIO, L. Introducción a la sintaxis estructural del latín. Barcelona: Ariel, 1983.
SAID ALI, M. Gramática histórica da língua portuguêsa. 3. ed., melhorada e aum. São Paulo: Melhoramentos, 1964.
SVOROU, S. The grammar of space. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1993.

Nenhum comentário:

Postar um comentário