sábado, 9 de maio de 2009

::. A mudança lingüística, sob uma perspectiva da Lingüística Funcional

Antônio Carlos Pinho | 28/11/2003

As pesquisas sobre mudança lingüística, em funcionalismo, estão estreitamente associadas à teoria da gramaticalização. A emergência do paradigma da gramaticalização, no curso da lingüística funcional americana, deu-se a partir dos anos 1970, quando houve um resgate do papel das transformações diacrônicas nas explicações da sintaxe. O texto motivador foi The origins of syntax in discourse (Sankoff e Brown, 1976).

Para a Lingüística Funcional o uso da língua nas situações reais de comunicação motiva as transformações que sofrem os elementos lingüísticos ao longo do tempo e essas transformações apresentam uma unidirecionalidade: caminham do discurso para a gramática. Com o processo de gramaticalização, os elementos perdem a liberdade típica da criatividade contextualmente motivada do discurso e tornam-se mais fixos e mais regulares.

A unidirecionalidade e a gramaticalização levam à hipótese de que há fatores de ordem cognitiva, sócio-cultural e comunicativa, que norteiam a mudança. Há transformações, segundo pressupostos da lingüística funcional, que ocorrem em todos os tempos e lugares, isto se comprova pelas evidências de que o mesmo tipo de transformação pode se processar repetidamente, enfraquecendo, segundo esta abordagem, a visão tradicional de que a mudança está relacionada apenas à sucessão temporal.

A mudança lingüística deve ser vista como um fenômeno tridimensional, ou seja, a trajetória da mudança de um elemento lingüístico é um reflexo de, pelo menos, três aspectos diferentes: tempo e, sobretudo, cognição e uso. Se o tempo é um fator necessário para que os processos de mudança se façam sentir, cognição e uso são de fundamental importância para uma teoria que vê as línguas humanas como o reflexo do comportamento, no ato concreto da comunicação. Na abordagem funcionalista, a fator tempo, embora ajude, em alguns casos, na avaliação objetiva da hipótese da unidirecionalidade, não é primordial para a compreensão da mudança lingüística. Dessa forma, a análise diacrônica é apenas uma das estratégias possíveis, no sentido de atestar as tendências pancrônicas que parecem estar mais associadas à capacidade humana de interpretar o mundo e expressa-lo a outros indivíduos. Nesta visão, a transformação da língua não é nunca uma função do tempo. Há muitos fatores diferentes que, tanto interno quanto externamente, podem determinar a sua transformação de um estado sincrônico para outro. O fator tempo apenas possibilita a interação desses vários elementos, dentro dessa perspectiva funcionalista.

As mudanças lingüísticas, pela teoria funcionalista, devem ser vistas como movimentos que se iniciam no instante que um indivíduo produz seu discurso, para um interlocutor específico, em uma situação comunicativa determinada. Se por um lado, a produção discursiva é limitada pelas restrições já consagradas na gramática da língua, por outro, constitui um processo criativo, em que o falante recria forma e estende sentidos de acordo com suas limitações cognitivas e às necessidades comunicativas impostas contextualmente.

Martelotta e Silva (1997) apresentam alguns exemplos de mudança lingüística numa perspectiva funcionalista. Inicialmente, eles tentam comprovar, por meio de uma abordagem tradicional, o processo de mudança do advérbio male, em latim, para o advérbio male em português com função de prefixo, que deu origem a termos como, por exemplo, maledicência. Segundo este estudo, pôde-se comprovar, em um primeiro momento, essa mudança no curso do tempo. Existem usos de “mal” advérbios com valor de prefixo no português que são provenientes de usos latinos: maledicência e malevolência que provêm, respectivamente, do latim maledicentia e malevolentia.No entanto, em casos do tipo malcriado e malfadado, a transformação temporal não é linear. Os dois últimos exemplos são diferentes, pois representam formulações portuguesas envolvendo o advérbio “mal” e não “evoluções” de vocábulos latinos que já representavam o prefixo “male”.

Diante das necessidades comunicativas, dos falantes, nos são apresentados, por Martelotta e Silva, um segundo exemplo de mudança lingüística, de orientação da Lingüística Funcional: o caso do advérbio com função de conjunção.

O advérbio “mal” diferentemente do latim, em português passou a desempenhar a função de conjunção:

Mal saí de casa, começou a chover.

Este é um efeito inesperado, pois não ocorreu no latim. Mas, ainda nesse caso, pode-se observar uma regularidade, desde que se olhe o fenômeno por outro ângulo. O português, segundo Sequeira (apud Cunha, Oliveira & Martelotta: 47) ao se ver privado de conjunções latinas, preencheu as lacunas por meio da utilização de advérbios (ou expressões adverbiais), de preposições e até de verbos, “que passaram a ligar cláusulas”. Foi comum, nesse processo, a passagem de determinados tipos de advérbios para conjunção. Além de “mal”, outros advérbios como apenas e bem, também passaram por esse processo. Veja:

Apenas sai de casa começou a chover.

É possível verificar que na língua, ao lado das mudanças atestadas pela diacronia de ordem fonológica, morfológica, sintática e semântica, também aparece a estabilidade, a qual se estabelece em todos os níveis da sua estrutura. Mas, diferentemente do fenômeno da mudança a estabilidade não tem recebido a mesma atenção por parte dos lingüistas.

Estabilidade e continuidade semântica e sintática

De acordo com Sebastião J. Votre (apud Cunha, Oliveira & Martelotta: 57) os trabalhos em lingüística ficaram tão presos à tradição histórico-comparativa e neogramática, a qual privilegia a mudança, que quase se perdeu a capacidade de examinar o que é estável, permanente e duradouro na língua.

Segundo formulação de Brugman, os fatores que produziram mudanças na fala humana cinco ou dez mil anos atrás não podem ter sido essencialmente diferentes daqueles que estão operando ou transformando as línguas “vivas”. Nesta perspectiva, Lúcia Maura Ferreira, propõe um estudo que privilegie a estabilidade semântico-sintática dos itens examinados verificando fenômenos existentes ao mesmo tempo num determinado momento do sistema lingüístico, aproximando ocorrências contemporâneas e passadas da língua portuguesa. Assim, ela pretende relacionar os itens examinados a princípios gerais, de caráter atemporal, que refletem processos contínuos, regulares e estáveis da língua em uso, os quais se atualizam a cada enunciado, há muitos anos.

Neste estudo, são abordados três trabalhos de orientação pancrônica que comparam enunciados de diferentes sincronias da língua. Nos três casos, como sugere L.M. Ferreira, visando a cooperação com o leitor e para maior inteligibilidade dos exemplos, a sincronia mais recente será examinada em primeiro lugar. A trajetória de gramaticalização enfocada examinou dados de língua em uso no português contemporâneo, no português do século XVI, no português do século XIII e no latim. Verificou-se que ao lado de indícios de mudança, foram observadas instâncias de continuidade e estabilidade.

Partiu-se de um exame da trajetória do elemento onde, no curso da sincronia acima mencionada, para se verificar seus diversos significados e usos. Pretendia-se com isso, examinar o caráter multicategorial e multifuncional do termo não somente nas várias sincronias do português, mas também no latim.

No português contemporâneo, onde tende a atualizar outros sentidos diferentes do sentido de lugar comumente usado. O termo assume valor anafórico-discursivo de espaço e (dentro do próprio texto) de tempo, chegando, em alguns contextos, a perder totalmente o sentido original de espaço físico, passando a ser utilizado como marcador discursivo, vazio de significado, funcionando como um recurso para manter a continuidade do discurso.

Analisando o corpus, selecionado por Maria Angélica Furtado da Cunha (1998) L. M. Ferreira ilustra suas ponderações a partir de alguns dos usos mais abstratos e não-canônicos do elemento onde presente no português contemporâneo. Veja:

(1) O meu forte mesmo é ampliar desenhos. Onde eu acho um desafio.


O exemplo (1) refere-se ao termo “onde” não num espaço físico, como é mais comumente usado, mas sim na função de espaço no discurso, retomando o enunciado precedente. Neste sentido, segundo L. M. Ferreira, “onde” funciona como elemento anafórico semelhante à “isto”.

(2) ...quando chegou no acampamento ... ele pegou a comida que tava tudo junto e dividiu...sendo que... cada pessoa comia de cada coisa uma... ou seja... o que eu levei... eu não comi sozinho... eu tive que dividir com todos os amigos... teve a noite onde foi escondido o grupo de cinco pessoas mais ou menos

No segundo caso, o termo não está na função nem de espaço físico, nem espaço discursivo. O termo “onde” assume a função de espaço de tempo.

(3) ... às vezes pessoas que roubam ... um saco de feijão ... um relógio ... ta na cadeia ... enquanto que outros que deu prejuízo à sociedade ... milhões e milhões ... bilhões até ... de dinheiro que foi tirado da população e ta aí à solta ... por quê? Porque tem dinheiro ... onde a justiça do Brasil só é válida para os pobres...

Aqui, “onde” aparece como conector causal, exercendo a função textual organizadora do discurso. Neste exemplo, observa-se que o termo perdeu muito de seu sentido original de espaço físico e passa a funcionar como elemento de ligação organizador das idéias.
De acordo com L. M. Ferreira, estes exemplos seriam evidências sincrônicas da trajetória da gramaticalização do elemento “onde”, a qual teria “obedecido” ao esquema “espaço > tempo > texto, desenvolvido no curso do tempo”.

No entanto, as análises revelaram que ocorrências no português contemporâneo foram constatadas em outros períodos evolutivos da língua. Assim o termo “onde” já expressava alguns dos sentidos encontrados atualmente. Este fato contraria, segundo L. M. Ferreira, a expectativa de que na análise das sincronias mais distantes seriam encontradas apenas evidências dos estágios referentes aos sentidos mais concretos.

Verificou-se, em um exemplo de um texto do século XVI, que o termo “honde”, não aparece como espaço físico (sentido mais concreto), mas sim se referindo a tudo o que foi argumentado antes. Funciona, portanto, como elemento anafórico-discursivo, com sentido de conclusão. Já em texto do século XIII, o termo surge na função de conector discursivo, com valor conclusivo, sem significado locativo. Em exemplos encontrados em gramáticas históricas e latinas observou-se que a forma ubi, que, juntamente com unde teria sido precursora do “onde” português, além do sentido canônico de lugar, era usada também com valor temporal e conclusivo.

Assim, conclui-se que, em seu percurso histórico, “onde” mantém seu sentido original, ao passo em que outros sentidos vão surgindo sem que o primeiro desapareça. Mariângela Rios de Oliveira (1998) postula que alguns sentidos seguem uma espécie de onda cíclica, realizando um exercício de emergir e submergir. A estabilidade semântico-sintática dos itens examinados, em diferentes sincronias, está relacionada a princípios gerais de caráter atemporal, que refletem processos contínuos, regulares e estáveis na mente dos falantes que os atualizam a cada instante há muitos séculos.

Nesta pesquisa, foram também analisados os verbos ver, achar, pensar e saber. Verificou-se que suas configurações sintático-semânticas no português são intimamente relacionadas às configurações correspondentes no latim. Portanto, segundo postula a autora, com base em S. J. Votre (2000), o padrão geral que emerge da análise é regular e contínuo resultando em uma gramática que resistiu a mudanças culturais, políticas e históricas. A partir dessa constatação S. J. Votre (op. cit.) propõe um princípio de “extensão imagética instantânea”, não desenvolvido no curso do tempo, segundo o qual “a faculdade metafórica da linguagem opera de modo instantâneo, no sentido de que todas as virtualidades e potencialidades de sentido de um termo se tornam disponíveis na mente das pessoas que interagem na comunidade discursiva, ancoradas no contexto situacional de cada interação”.

A análise desses exemplos, que encontram sua contrapartida em ocorrências do português contemporâneo, evidencia que basicamente as mesmas estratégias comunicativas e as mesmas referências encontradas no uso dos verbos poder e posse vêm sendo usadas por falantes há 22 séculos, o que significa que as pressões funcionais e comunicativas que motivam sua ocorrência e cristalização, são contínuas e regulares e, tudo indica, permanecem inalteradas.

No que diz respeito à mudança semântica, as evidências indicam que cada camada de sentido disponível no português contemporâneo, coexistiu com sentidos de fases precedentes e representam processos estáveis, como é o caso do verbo ver. As evidências oferecidas pelos enunciados com este verbo, segundo S. J. Votre, indicam a necessidade de enfraquecer a hipótese de unidirecionalidade concreto > abstrato como trajetória atestável diacronicamente. Na perspectiva proposta pelo autor, nada desaparece ou é inteiramente novo. Tudo está em processo de adaptação às novas situações, sendo reformulado, mas sem evidências de que um uso precede o outro no curso do tempo.

O princípio de extensão imagética instantânea, desenvolvido por S. J. Votre, não é aplicado linearmente no curso do tempo. Segundo este princípio, de correspondência metafórica, as tendências presentes em determinado momento do passado atuam no presente e continuarão atuando, da mesma forma, indefinidamente, sempre que o contexto situacional de cada interação assim o exigir.

A adoção deste princípio nos ajudaria a entender melhor a aparente onda cíclica proposta por M R Oliveira, acerca dos usos de “onde”.

A perspectiva pancrônica do estudo dos fatores lingüísticos, ao permitir a comparação entre várias sincronias da língua, dá maior visibilidade aos aspectos relacionados à continuidade e à estabilidade.

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